Fragmentos curiosos e inusitados da vida privada itaquiense
O imponderável e o absurdo lado a lado
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São crianças como essas que estavam na frente da casa do padre José Coriolano de Sousa Passos que foram o alvo da ira de tão preocupado cidadão (foto antiga de Itaqui-1908) |
Prof.º Paulo Santos
Há tempo atrás, encontramos uma cópia do jornal O Pharol, de 23 de agosto de 1903, publicado em Itaqui, sob a coordenação do editor-gerente José dos Santos Loureiro. Pois bem! Essa preciosidade tem mais de século de existência trazendo as peculiaridades do momento. É claro que estava atrelada à política, tanto que no frontispício aparecia mensagem ufanista: Pela Pátria.Pela República. Definia-se como jornal literário, comercial e noticioso. Ano VI, N.º 234. Edição simples, apenas tipos, sem uma única ilustração, desenho ou foto.
O que atraiu minha atenção foi a seguinte notícia, com transcrição integral:
“VICIO FUNESTO. Com a epigraphe A gurisada, escrevemos no numero passado (...)pedindo a intervenção de quem compete para fazer cessar o abuso das perniciosas jogatinas dessa recua immensa de meninos vagabundos que, com seu prejuiso próprio e o sés Paes e patrões, abolentam-se nas esquinas, nos sítios vasios e muitas vezes no meio das ruas a jogar bolinhas, carretéis, bate-fino, figuras e agora, ultimamente introdoziram o jogo de botões. E o desaforo vai ao ponto de irem muitos destes futuros casos de POLICIA a casas commerciaes pedirem amostras do ultimo artigo aqui referido, em nome de seus paes ou patrões e não devolverem taes amostras. É o cumulo do banditismo. Por segunda vez reclamamos enérgicas providencias á policia, no sentido de cohibir tão prejudicial costume da maior parte da infância desta terra. Ella, a policia, é competente, para, de qualquer forma cercear o escandalo pela raiz. Temos certesa que a população toda a aplaudirá.”
Meu Deus do céu, que absurdo! Que exagero!
É claro que precisamos examinar à luz daquele tempo, sob a ótica da educação dos primeiros anos da República. Mas, parece algo descabido.
O distinto redator queixa-se das brincadeiras dos meninos: como jogar bolita, pião, o bafa, jogo de botões, práticas que muita criança ainda exercita. Piaget, Vigotsky, Freinet, Emília Ferrero se vivos estivessem, com certeza, estariam horrorizados com tamanho disparate.
Interessante os termos usados pelo jornalista: “perniciosas jogatinas”. Como se aquelas inocentes brincadeiras tivessem essa conotação. Usa ainda “récua imensa de meninos vagabundos”. Récua é um coletivo para bandidos e vagabundos é pejorativo demais para crianças que estariam na idade de brincar. Indignado, completa: “é o cumulo do banditismo”. Pobre gurizada! Imagina se o mesmo estivesse falando de adultos!
No final pede enérgicas providências da polícia. O que seriam essas enérgicas providências? Prender os guris? Surrá-los? Confiscar seus brinquedos?
Pois o passado nos reserva cada surpresa. Como eram diferentes os tempos. E se pedíssemos para nossa gloriosa Brigada Militar prender a gurizada que gosta de skate, de patins, roler, de bicicros, de videogame e outras modernidades?
Imaginemos o caríssimo autor do texto teletransportado para nossa realidade vendo garotas e garotos parodiando versões de Despacito? Dançando e rebolando com antológica música da “metralhadora”? Ou horrorizando-se quando criancinhas dançam aquela magistral letra: “ela é terrorista!”.
Se nosso distinto colunista visse as crianças de dois aninhos manipulando tablets, celulares android, notebooks? Ficaria escandalizado. Tudo isso para ele pareceria uma sandice.
O imponderável se faz presente nesse jornal O PHAROL.
Noutra sessão, ao lado dessa inditosa notícia tem outra que não se coaduna com o excesso de rigor com as brincadeiras daqueles garotos itaquienses. Pois na coluna Varias, aparece a colossal notícia:
“Hoje realisa-se no Hotel Nacional, importantes rinhas de gallos.”
Por favor, paremos por aqui!
Considerando a Educação no Período da Primeira República, onde a prática precedeu as teorias, hoje o método didático é completamente o inverso, pois o que ilumina a educação são as teorias dos grandes educadores como Piaget, Vygotsky, Freinet, Foucault, Emília Ferreiro....por isso penso que as crianças as quais o redator menciona, talvez sejam as crianças dos dias atuais, que tem famílias, residências fixa mas vivem em “situação de rua”, portanto não são “crianças de rua”, da mesma forma o brinquedo nessa época, também não era visto como objeto de interação e desenvolvimento das crianças. Porém se traçarmos um paralelo desse período com a atualidade, considerando apenas os valores de Educação/Família/Sociedade, Criança/Violência/Direitos, de quem é a responsabilidade quando o caos se instala e a Escola não dá conta da demanda de uma sociedade que vive em clima de guerra e violência? E nesse propósito de construção de novos paradigmas, que muitos valores foram se perdendo e os poderes das autoridades policiais também estão sendo tirados.
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